Normalmente, quando se fala de casos no limiar da verdade, ou a confundirem-se com a mesma, é habitual tomarem-se as devidas precauções, admitindo que os mesmos casos nada têm a ver com a realidade e se parecem confundir-se com a dita, acontece porque deve-se a uma pura coincidência. Pessoas, factos, notícias, decisões que fazem parte da história que vai ser apresentada, que está acontecer e que não revela prazo para terminar, têm como génese o "centro das histórias" do autor. Aí alinham-se outras histórias prontas a serem publicadas.
Foi feito o necessário e suficiente esclarecimento. Do mais recôndito dos recônditos escaninhos, já viu a luz visível do dia o até agora "ente" invisível, aos olhos ou à lupa, nascido à revelia da sensatez e do direito à vida de todos os seres humanos, mas lançado e espalhado por motivos obscuros que só são nítidos e objetivos para o seu autor. Disse. Tenho dito. Ou isso.O piano-bar do Clube Praia da Oura
Por mais desconfiança que exista, por enquanto faltam provas e, provavelmente, faltarão sempre. Assim, a desconfiança não tem valor.
Mas vamos à história. A personagem principal chama-se João, um técnico de contas mais interessado em viver a vida pela vida do que em fazer contas para os outros. Vive bem, mas podia viver melhor. É solteiro e, ainda por cima, adepto da ideia que vale mais só do que mal acompanhado. Talvez viva só porque ainda não encontrou a sua alma gémea. Ou assim.
Aí entro eu, o autor. É inevitável.
«As almas gémeas não existem, João!»
«...?»
«Dizes bem.»
«Ótimo.» Podia ter dito.
Não me meti na sua vida, mas ele "contou-me" como aconteceu. Ou melhor: escreveu um diário.
NO CLUBE PRAIA DA OURA
A Judite convidou-me para passar uma semana no mais que conhecido empreendimento "Clube Praia da Oura". Está calor, céu azul, a água do mar quase morna e os "dom rodrigo" são de comer e chorar por mais. Tudo do melhor, a não ser a dúvida que me assalta acerca daquele empreendimento, tão agressivo quanto, aparentemente, aliciante
Ainda não entendi porque é permitido este sistema de venda "a retalho" de um apartamento em que cada proprietário é o dono do mesmo durante uma ou mais semanas. Começam por oferecer um fim de semana grátis num dos apartamentos e semelhante oferta parece que caiu do céu. Que ideia maravilhosa! Tudo em grande, ó zé consumidor. Gostaste muito. Ofertas de receção. Meia garrafa de branco martelado, um pacote de leite, garrafas de água lisa, bolachas e um pouco mais. Ah!... Ar condicionado oportuno porque o apartamento está voltado para sul. Serviço de quartos quase impecável com roupas de cama mudadas dia sim dia não e jogo de toalhas brancas renovadas todos os dias. Frigorífico. Fogão. Televisão. Quarto. Mesa. Cadeiras. O essencial. E no exterior, piscina, jacuzzi, solário natural, mais conhecido por grelhador, parque automóvel gratuito. Praia a perder de vista, quase à distância de estender o braço. Não sei me esqueci de alguma coisa, mas adiante. Depois, já dentro da técnica quase mortífera do marketing, segue-se a venda de uma ou mais semanas gold com o agosto garantido. Ou uma ou mais semanas também garantidas em junho e julho se a venda não for dourada. Tudo em grande, ó zé consumidor, mas acabaste de cair numa armadilha do caraças. Ah, é verdade… a propósito, esse pequeno luxo custou uma nota preta e todos os anos é pago o condomínio, sempre inflacionado, como se impõe. O contrato é transparente. Tão subtil que não se dá conta de ser perpétuo ou tendencialmente perpétuo. Aliás, isso é o somenos. No ano seguinte o apartamento está de tal forma valorizado que o proprietário pode vender a sua posição pelo dobro, dizem os vendedores. Ah!, mais uma coisa. Também se pode trocar por férias no estrangeiro.
Não sou o proprietário, mas até podia ser. Nem me emprestaram o apartamento para uma fuga retemperadora para longe de Lisboa. Antes pelo contrário. Bom, basta desta descrição tipo deita abaixo. A proprietária do apartamento está à minha espera e parece que começa a mostrar uma certa impaciência.
«João, despacha-te que temos que ir jantar lá acima...»
É a minha companheira de circunstância que me chama. Aquele "lá acima" significa que vamos subir uns bons metros até ao centro, o que acaba por ser bom para a saúde. A vida sedentária que se leva hoje em dia não é nada recomendável. Grato, "Clube Praia da Oura". Finalmente encontro um ponto favorável. Dar corda aos sapatos é um bom remédio para tratar o corpo.
«Estou despachado, Judite.»
Pronto. Já esclareci que ela chama-se Judite. Eu sou o João. Mas advirto que não somos dois em um. Longe disso. Para pôr os pontos nos "is", quero esclarecer desde já que desconheço o que aconteceu de extraordinário para ser caçado, aparentemente, por esta mulher que me diz pouco. Talvez a culpa seja da atração física por uma fêmea que valoriza tudo o que tem e sabe mexer-se com todos os atributos na cama. Portanto, nada de feromonas, nem paixão à primeira vista. Foi talvez uma conjugação de interesses mútuos. Isso. Fica melhor assim. Aliás, estou só à espreita de uma aberta para me escapar, se é que ela não se escapa primeiro. Tanto eu como a Judite estamos a prazo.
«Viste a minha mala?»
«Que mala, amor?»
Uma palavra ternurenta para amenizar uma tempestade num copo de água que tivemos esta tarde porque me viu a dialogar com outra mulher e eu jurei a pés juntos que ela estava só a pedir-me uma informação. Claro que não se convenceu e daí a tempestade. Dirão: prova de amor. Nada disso. Àquele ato chama-se marcação do território. Aliás, tive que pagar com juros e mesmo assim o nosso relacionamento não estabilizou nos níveis normais. Daí o "amor" que, francamente, me soou a falso ao dizê-lo. E ela pareceu não dar conta. Estava no seu papel.
«A Pierre Cardin, tonto!»
Tonto? Com que sentido? Num casal normal teria deixado o sabor a ternura. Neste caso, aguenta-te no balanço, João! Ninguém te mandou meter-te com uma ninfomaníaca.
«Claro, a Pierre Cardin. Olha, está mesmo atrás de ti...»
A Judite é uma doçura de mulher, uma sabedora das mil e uma posições do Kamasutra e capaz de me oferecer o céu, se não beber um copo a mais. E aí fica tudo estragado. Sessão adiada. Mas não tenho qualquer problema. Isto só dura uma semana, ou talvez menos. Depois, terminamos esta espécie de contrato. Descartamo-nos sem qualquer problema, sem ressentimento e tudo isso, tal como acontece com as toalhas brancas da casa de banho que são renovadas todos os dias.
«Olha, João, podemos ir ao Beirão. Que achas?»
Ah!, o Beirão. Nada tenho a dizer de mal. A não ser… Pois. Sou eu quem paga tudo o que diz respeito a despesas no exterior. Daí o "Ah!", talvez mostrado num esboço de sorriso amarelo. Mas tudo bem.
«Ontem esperámos muito.» Admiti.
«Porque chegámos tarde.» Justificou.
E falou verdade. A culpa foi do agosto. E ainda por cima, era sábado e já passava das nove da noite quando entrámos restaurante. No entanto, confesso que comemos bem. Para o carote, mas temos que ter em conta a relação qualidade-preço.
Ela tinha razão. Desta vez chegámos mais cedo e não demorámos muito a ser atendidos. Espetada de lulas, batatas fritas e esparregado. Vinho da casa porque o preço das garrafas de marca escaldava. Tinto, contra os preceitos. Bolo de bolacha. Café. Até fiquei azul com a carga excessiva de cafeína. Dei conta quando, já na "rua dos malucos", escolhia uns postais ilustrados. De repente vi um céu estrelado artificial e, de seguida, senti o chão a fugir-me dos pés. Larguei os postais de imediato e sorri para ela, algo abananado.
«Sentes-te bem, amor?»
Ela preocupou-se. Quem me dera que fosse um amor verdadeiro! Mas não havia volta a dar. Depois, tínhamos a cena do contrato e nem um nem outro ia renová-lo.
«Foi só uma tontura. Já passou, não te preocupes.»
Amores verdadeiros não se encontravam em cada esquina. Muito menos as almas gémeas.
«Vamos para casa?»
Pior a emenda que o soneto. As ninfomaníacas não existiam só nos livros do Irving Wallace. Prova provada.
«Se não te importas, damos uma volta para fazer a digestão e depois regressamos a casa para o nosso aconchego, Juditinha.»
«Aconchego» sorriu. «Assim está bem.»
O raio daquela mulher era insaciável.
A volta foi curta. Fizemos o clássico “circuito da confusão” pela rua Sá Carneiro onde foram ultrapassadas todas as expectativas dos decibéis. Como a noite estava um pouco ventosa demos a volta depressa, levados pelo vento. Pelo menos pareceu-me.
«Queres ir ainda a algum lado?» perguntei.
Olhou para mim, indecisa. Parecia estar a medir os prós e os contra. Aquele olhar dizia tudo ou quase tudo o que lhe ia na alma. Desejo e mais desejo. Só desejo.
«Bebemos um shot e vamos para casa. Concordas?»
«Só um?»
Disse que sim com a cabeça. Tinha que ser. E afinal não foi só um. Ao terceiro tive que impor-me. Já chegava.
«Assim, dá-te o sono, Judite.»
Até parecia que estava interessado. E até talvez estivesse.
«Tens razão. Já me esquecia» sorriu, lânguida. «Vamos?»
Aquele brilho nos olhos queria dizer alguma coisa.
Adivinhei o que estava a engendrar.
«Pensando melhor, Judite, bebemos um último copo.»
«Concordo contigo.»
Caiu na armadilha.
Só então regressámos às origens provisórias. Mas havia um bar à entrada do empreendimento.
Espreitei. Achei simpático.
«Vamos para casa.» Tentou impor-se, já com a voz presa.
Positivo. O bocejo prolongado deu-me razão.
«Entramos só para ver o ambiente?» alvitrei.
Ela disse que não e eu disse que sim.
«Se não te importas… Há boa música. Não ouves?»
«Vou andando. Mas não te demores. Estou caliente, sabes?»
Pois. Se não lhe der o sono.
«Claro, querida. É só ouvir duas ou três canções sentimentais. Sinto-me nostálgico.»
«Isso, inspira-te. Hoje apetece-me...»
«Sim?»
«Ser a amazona.»
Não esperava outra coisa dela. Era uma terrível cavaleira que me fazia sair do sério. Mas eu gostava de mais ação.
«E ontem?» perguntei, com uma certa ironia na voz.
Arrependi-me de imediato, mas já era tarde. Pobre Judite que o sono tragou.
«Caí do cavalo. Bem observaste, João, que o último drink caiu-me mal. Mas juro que vou compensar-te. Prometo que hoje não me deixo cair.»
«Mas eu queria cavalgar por montes e vales, Juditinha. E fazer aquela posição de que também gostas muito.»
«Já te disse que vou ser a amazona. Tens que os ver por baixo.»
Referia-se aos montes e vales.
«Pois. Mas hoje sou eu quem dá a voz de comando. Vai andando que não demoro. Prepara o ambiente.»
«Isso julgas tu.»
Teria que ser.
Naquela noite funcionava o piano-bar e o pianista tocava música dos anos sessenta, o que me agradou. Era um nostálgico.
Sentei-me ao balcão. Mandei vir uma cerveja. Fiquei a olhar para a bebida da parceira à minha direita. Era uma coisa avermelhada e doce. Digo doce porque ela bebeu quase de uma vez sem fazer uma única careta.
Confirmei que o ambiente estava agradável, mesmo com o exagero levado ao extremo dos "bifes e das bifanas" que falavam alto e bebiam invariavelmente cerveja em canecas, umas atrás das outras. Um deles até ofereceu uma imperial ao pianista que não se fez rogado. Embora não cantasse tinha a garganta seca.
Havia cartões para se fazerem pedidos ao pianista para tocar esta ou aquela música. Então, resolvi fazer um pedido, mas este telepático. Talvez porque era diferente. Ou talvez porque sim, talvez porque não. “Maria Bonita”.
Fiquei aguardando. O intervalo chegou quase de seguida. O inglês que ofereceu a imperial ao pianista estava a ficar impaciente. Os olhos pareciam querer saltar das órbitas. Mas não saltaram. Uma caneca para ele e mais uma imperial para o pianista e lá recomeçou a música. A resposta ao meu pedido telepático veio com a segunda canção. Não a “Maria Bonita” mas sim outra canção, mais contundente: “Piensa en mi”, de Luz Casal. Nostalgia por nostalgia, tanto dava. Ou não?
«Vou-me já embora.» Decidi, visivelmente irritado.
Antes o aconchego claustrofóbico dos montes e vales da Judite. Dizia mal dela e afinal sabia-me bem a brincadeira que nada tinha de inocente.
Mas não me fui embora porque duas mulheres jovens, ambas loiras e vestidas de vermelho até aos pés, sentaram-se nos bancos altos do balcão, logo à minha esquerda. Lá tinha que arranhar o meu inglês das docas se desejava arriscar uma aventura. Nada perdia em arriscar. Que se lixassem a ninfomaníaca da Judite e a sua arte de cavalgar em toda a sela.
Bebi de um trago o resto da cerveja e senti-me logo com mais coragem para montar a estratégia de ataque. Mas não foi preciso porque a mulher mais próxima de mim sorriu-me e deixou cair de propósito uma coisa no chão. Não vi o que era, mas não me passaram despercebidos os seus olhos de gazela espantada. Prontifiquei-me a apanhar a coisa, claro.
«Obrigada.»
O velho truque do lenço. E afinal eram portuguesas. Ou uma delas.
Por acaso não era um lenço, constatei.
«Quer um?»
Halls de limão. Não apreciava muito, mas disse que sim.
«São bons para a rouquidão.» Esclareceu, sorrindo.
«Também acho. Mas sei de outra coisa melhor.»
«Apocalipse, não, amigo João! Deixa-te de ideias loucas.»
«Disse alguma coisa?» perguntou a loirinha.
Não disse, mas pensei alto.
«Claro que não. A sua companheira também bebe?»
Perdi-me no decote do seu vestido vermelho comprido até aos pés. Inevitável. Ela pareceu não dar conta. Ou fingiu. Tanto fazia. Não deixei de ver.
«Porquê? Não perguntou se eu bebia. Deixe-a em paz e sossego que está à espera do namorado. Pergunte-me...»
«Se também tem namorado?»
Olhou para mim, algo sarcástica.
«Acha que sim? Mas ainda não perguntou!»
«Ah sim. Que posso pedir para si?»
«Uma ginjinha.»
Aquilo não era um pedido apocalíptico. Longe disso.
«Uma ginjinha?»
«Que tem de mal?»
«Nada. Dupla?»
«Não há ginjas duplas.» Afirmou, convicta.
«Tripla?»
«João, és tu?»
«Dorme, meu amor.»
«Tenho frio. Vem depressa para a cama. Estou ansiosa por aquecer..»
«É o vais!» pensei.
Fiquei a olhar para ela o melhor que pude na meia obscuridade em que estava mergulhado o quarto. Não. Nada de amazonas e essas coisas todas. Muito menos depois de ter travado conhecido com a... como se chamava ela? Ah, sim. Susana. A bela Susana.
«Acha que o bar ainda está aberto?»
«Se estiver fechado, pode ser no meu quarto.»
«Acho bem. Mas presumo que está lá a sua amiga.»
«Claro que não. Ela vive com a tal pessoa de quem estava à espera.»
«Então, está bem.»
«Amanhã vou para Lisboa.»
«Só?»
«Com o Golf, claro. Quer boleia?»
«Vou pensar.»
A amazona que tinha frio, afinal de contas estava meio destapada. Compreendia a sua estratégia provocatória, mas não ia por aí.
Rodei cento e oitenta graus e, em bicos de pés, dirigi-me para a saída do apartamento. Tudo feito com o mais ruidoso dos silêncios. Mesmo assim, deu pelo meu movimento suspeito.
«João! Onde vais a estas horas?»
Adivinhem onde ia?
Pois. Mas antes tinha que voltar atrás para calçar os sapatos.
«Julguei que tinhas saído.»
«Engano o teu, Judite.»
«Vem depressa, amor…»
«Não demoro, querida.»
Agora é que saía de vez.
«Sou eu, Susana.»
«Eu quem?»
«O João.»
«Ah!, deves ser quem eu penso que seja. Benditas ginjas! Mas olha que eu não sou assim.»
«Assim, como?»
«Fácil.»
«Sempre há boleia para Lisboa?»
«Sim. Mas ainda é cedo. Primeiro passa um pouco pelo sono.»
E foi então que pensei:
«De momento o que mais gosto na vida é de morar em Lisboa. E, se possível, não ser como o rouxinol daquela canção revolucionária a quem cortaram as asas!»
O MAIS IMPREVISÍVEL DOS DIÁRIOS
Lisboa, 28 de fevereiro de 2020
Isto é um diário. Uma espécie de crónica gratuita e surreal, sem suporte publicitário que sugere visões genuínas do monstro invisível que hoje está em todo o lado mas não é Deus, admito. A propósito, Deus criou Adão e, de uma sua costela, a Eva. Os dois foram presenteados com o Paraíso, mas logo expulsos deste lugar idílico só por causa de um ato de desobediência, tendo por participantes tentadores uma maçã e uma serpente. Mas isso é uma história complicada que colide com a teoria do Big Bang e que não vem chamada para aqui. Ou vem? Porque afinal não sei onde está Deus que, de certeza, já viu o monstro invisível e deixou-o andar à solta. Também não vou meter-me nisto.
Ainda não sei muito bem porquê, mas quero que fiquem para memória futura estes milhares de palavras que vou escrever, dia a dia, ou não obrigatoriamente dia a dia. Em boa verdade, é natural que não esteja cá para recordar sem saudade esta coisa estranha que fez mudar as nossas vidas, mas que há de passar, segundo dizem os mais otimistas. Se acontecer assim, para o sítio onde vou ser levado, o nada ou o outro lado da porta, nunca mais terei comigo os meus pensamentos, os amigos, habituais e futuros, para juntos bebermos uns copos e discutirmos a metafísica da lógica da batata e isso tudo mais que nunca acaba e também não sabemos como começa porque rapidamente foi esquecido pelo entorpecimento. Nem tão pouco terei oportunidade de adormecer para acordar num amanhã que tem a virtude de adivinhar toda a sequência de momentos que terá pela frente. Aliás, se fosse possuidor desse dom, de certeza que amaldiçoaria a oferta que me foi dada pois, se adivinhasse o futuro, certamente a vida perderia todo o sentido. Era como ver um filme nunca visto antes e conhecer de antemão toda a trama que se desenrolava do princípio até ao fim. A propósito, o que está a acontecer tem muito de parecença com o tal dom no que diz respeito a um amanhã para todos os humanos deste belo planeta azul em que se está de passagem. À medida que o monstro avança, sem obstáculos à altura para ser detido, um número crescente de pessoas vai adquirindo esse dom, maldiz o dia de amanhã, admite que é impotente para o travar e o melhor que tem a fazer é enterrar a cabeça na areia e esperar que passe. Há de passar. Acredito também que há de passar. Mas muitos não ficarão cá para esquecer as imagens indeléveis de mortes não pré-anunciadas mas reais, os números aterradores que passaram nos ecrãs momento a momento, os heróis que enfrentaram o monstro a custo da própria vida, os dramas que foram contados e os que os viveram, e, finalmente, o dia bendito em que o sol voltou a brilhar nos seus corações e tardou a chegar.
Fernando Pessoa disse um dia não saber o que o esperava o amanhã. Como cada um de nós não diz essas palavras, mas pensa nas mesmas.
Oxalá muitos dos muitos tenham um amanhã!
Mais de dois anos antes...
Deixei de uma vez por todas, a Judite no aconchego dos lençóis e dos vapores etílicos que talvez tenham induzido nela um sonho mais confuso e surreal que os chamados sonhos-padrão e aceitei a boleia de uma desconhecida para Lisboa. Seu nome, Susana. Uma mulher cordial, atraente. E... ah!, já me esquecia. Tentámos dormir na mesma cama e os nossos sonhos foram reais. Eróticos, mas estranhamente diferentes dos mesmos que tinha com a Judite e afins. Quando falo deste tipo de sonhos sabem muito bem aos quais estou a referir-me e não preciso de dizer mais a esse respeito.
A viagem para Lisboa foi silenciosa. Desconhecia o que se passava na mente da bela Susana, se a nossa relação sexual fora mera rotina, se viria a deixar marcas, não no que dizia respeito a filhos, dado que nem eu nem ela tínhamos tomado os usuais cuidados anti-sida ou outros, mas a decisões ou propostas suas quando chegássemos à capital. Ao contrário dos breves momentos passados no piano-bar e na cama, ela mostrou-se reservada, talvez triste, quase de certeza arrependida. E, neste último caso, só havia uma palavra para descrever esse estado de alma. Ressaca. Era isso. Não mais que um reflexo da ressaca.
«Susana, fala-me de ti.»
Por momentos desviou o olhar da autoestrada e esboçou um sorriso que não consegui definir.
«Não. Não vou falar de mim. O disparate que fiz, está feito. Quando chegarmos a Lisboa cada um vai para seu lado e pronto. Acabou-se. Nada aconteceu.»
«Pronto, o quê?»
«Sabes muito bem. Foi uma noite. Nada mais que uma noite que vais esquecer facilmente.»
«É o que pensas?»
«Posso estar enganada, mas é o que penso. Desculpa-me a frieza das palavras. É a realidade.»
«Realidade?»
«O que aconteceu esta madrugada não passou de um equívoco.»
«E se eu não pensar o mesmo?»
«É porque estás a reagir a quente. Mais logo ou amanhã cais em ti.»
«Seja. Se é o que pensas, tudo bem. Mas não podes pensar pelos dois.»
«Desculpa. Eu sou assim.»
Que queria dizer? Tinha no currículo muitas vivências como a daquela noite, ou apenas reagia assim pelo receio de envolver-se?
«Não falamos mais nisto, João. A noite de ontem não aconteceu.»
Achei por bem não insistir e respeitar o seu silêncio. Aliás, ela tinha razão. Não passou de uma noite diferente. Como todas as noites similares são diferentes. Quanto ao resto da viagem, esta decorreu no mais ruidoso dos silêncios. Senti até um mal-estar estranho. Só desejava que Lisboa ficasse à vista.
«Onde queres que te deixe?»
«Olha, Susana, tanto faz.»
Estávamos a atravessar a rotunda do Marquês.
«Vou para os lados do Saldanha. Posso deixar-te por aí.»
«Agradeço. Moro perto.»
E ficámos assim.
Já subíamos a Fontes Pereira de Melo. Mais uns duzentos metros e chegava ao meu destino intermédio.
«Pode ser aqui?»
«Sim, por favor.»
Tinha encostado o Golf ao passeio, a poucos metros da segunda paragem de autocarros da Carris.
«Grato pela boleia, Susana. Gostei de conhecer-te.»
Fiquei arrependido do tom de despedida que dei àquele "gostei de conhecer-te". Mas o que estava dito, estava dito. Talvez ela até merecesse.
Limitou-se a acenar com a cabeça. Acionei o manípulo da porta e saí. Mas não dei mais que cinco passadas.
«João!»
Voltei-me. Ela já estava no passeio e acenava para que voltasse para trás.
«Não sou quem imaginas...»
«E tu sabes o que imagino?»
«Claro que não. Mesmo sabendo que nunca mais nos vamos encontrar, gostava que não ficasses com a impressão que eu sou uma mulher fácil.»
Beijei-a numa das faces.
«Conheci-te só ontem. Não vou esquecer-te facilmente, Susana. E sabes porquê?»
Disse que não. Como podia saber?
«Nem eu sei também. Adeus. Cuida de ti.»
«Adeus é para sempre, João.»
Recuava?
«Retiro a palavra. Nunca se sabe.»
«Olha...»
«Sim?»
«Gostei de conhecer-te, João. Esquece o meu mau humor que durou em toda a viagem. E sê feliz.»
«Obrigado. Também tu.»
Não sei se aquilo foi um recuo. Era demasiado tarde para descobrir porque a Susana já estava dentro do Golf quando lhe disse:
«Não vou esquecer-me de ti...»
Não sei se me ouviu.
Lisboa, 29 de fevereiro de 2020
Lisboa é sempre Lisboa. Não há cidade que se compare. Só tenho pena de uma coisa. Muita gente que nada tem a ver com o país e a cidade, também descobriu o mesmo que eu e transformou esta "Lisboa sempre Lisboa" em algo que nada se compara com a Lisboa que conheci há anos atrás. Paciência. Mas isso é secundário. Preocupa-me outra coisa e essa preocupação transporta-me para longe. Milhares de quilómetros.
Está a acontecer algo assustador em Wuhan, uma cidade de 11 milhões de habitantes, na província de Hubei, situada no centro da China. Um novo coronavírus que, silenciosamente, se foi transmitindo de pessoa para pessoa, provocando em alguns pacientes sintomas como febre alta, tosse e dificuldades respiratórias que culminavam, nalguns casos, com uma pneumonia mortal. A princípio esses sintomas pareciam estar ligados a uma simples gripe, compasso de espera que facilitou a propagação rápida do vírus oportunista. Após nove semanas de transmissão na província de Hubei, o vírus provocou quase 65000 casos positivos e mais de 2000 mortes. A situação é complicada. Parecia estar a repetir-se a pandemia de 2002.
Provavelmente esta infeção originou-se em morcegos, tendo saltado para homens num mercado de frutos do mar e animais vivos exóticos por meio de um hospedeiro não identificado. Tudo é nebuloso.
O mercado foi encerrado no primeiro dia de janeiro.
Estava lançado, embora tardiamente, o sinal de alarme e as autoridades decidiram colocar em quarentena milhões de cidadãos chineses. Entretanto, o surto viral já tinha saltado a paliçada para Hong Kong e Singapura. Seguiram-se Coreia do Sul, Estados Unidos, Irão. Era um sinal de pandemia em marcha. A situação estava mais complicada do que quando da anterior pandemia.
Em 23 de fevereiro a vida corria com normalidade na Itália, em cidades como Roma, Nápoles e Bérgamo. Até que se tomou conhecimento do primeiro infetado em Codogno, a sessenta quilómetros de Milão. Mas o pior aconteceu quando o vírus se espalhou pelo hospital, sendo a doença identificada como uma pneumonia atípica.
Segundo alguns cientistas, há algumas semanas que o vírus já circulava pelo país confundido com uma gripe comum, o que foi um erro grave.
Em 27 de fevereiro já havia dez mortos.
E agora?, o que nos espera em Portugal?
Será que já anda por cá o sacana do coronavírus trazido ao mundo por chineses que, estupidamente, têm o hábito esquisito de comerem toda a espécie de animais exóticos com a maior das complacências dos responsáveis máximos da China? Ou o vírus surgiu de outra forma?
Isto não é ser egoísta, mas ainda não vivi tudo quanto tinha direito a viver. É certo que sou um solitário que não acredita na história da mulher única, ou nas almas gémeas e principalmente no casamento. Os anos têm vindo na sua sequência normal e eu vou saltando de beiral em beiral em busca não sei de quem. Nenhuma mulher me prende. Uma por isto. Outra por aquilo. Outra ainda por não sei o quê. Talvez o defeito seja meu. O mesmo se passa com a minha profissão de técnico de contas. Não me queixo dos proventos. Mas a verdade é que estou saturado de criar artifícios para esconder a verdade dos números em benefício não só do cliente como meu. O que mais gostava agora era poder usar estes dotes de prestidigitador para desaparecer de cena, ou então ser o homem invisível para não ter que enfrentar mais as pessoas. Só isso, pois basta de tirar proveito ilícito.
E que mais gostava?
De duas coisas. Só duas coisas. A primeira, de acordar amanhã e ouvir na televisão que o surto do coronavírus foi debelado e não ocorreram mortes no meu Portugal. A segunda, descobrir porque carga de água penso com frequência na Susana, aquela mulher que vestia de vermelho quando a vi pela primeira vez no piano-bar, em Albufeira...
4 de março, quarta-feira - Dia cinzento
Dormi mal esta noite. Não estou tranquilo. Sinto a cabeça oca. Preciso de um café bem quente e com muita "robusta" para parecer ser quem sou. E de um duche prolongado, o mais frio que consiga suportar. Estupidez a minha. O esquentador não possui a funcionalidade de arrefecer a água. Bom, adiante. Não entendo porquê este desconforto. Tudo está bem por aqui. O monstro por enquanto anda longe. Tenho esperança que se esqueça de nós, deste retângulo insignificante à beira-mar plantado que nos acolhe. Não tenho lido os jornais ultimamente nem visto e ouvido os noticiários da SIC Notícias. Neste momento sou uma espécie de avestruz que enterrou a cabeça na areia. Mas preciso de reagir. De conhecer as linhas com que me coso. Não posso ser apanhado de surpresa pelo inimigo invisível. Ah!, este café está insuportável sem açúcar. Mas é um bom remédio para tirar esta coisa estranha da cabeça. Pronto. Agora segue-se o duche choque-brusco. Não vai ser muito agradável, mas é o melhor que se pode arranjar. E que vou fazer a seguir? Talvez ir até ao fundo do corredor e voltar para trás, repetindo o ato uma centena de vezes. Ao mesmo tempo faço exercício físico. Tenho no telemóvel a aplicação do contador de passos. Este tipo de exercício só melhora a forma física, o que é meio caminho andado. Mas dizem que é um engano. As caminhadas devem ser feitas em campo aberto e sem paragens. Para o diabo o contador de passos, a conversão em quilómetros e a perda de calorias. E o outro meio caminho? Raios! Tanta preocupação quando, aqui, isto nem ainda começou ou então está no princípio. E a propósito, hoje vou saber como estão as coisas. Ou não me chame João.
Dez da manhã. Decidi desenterrar a cabeça da areia e comprei o Diário de Notícias no quiosque em frente ao prédio onde moro. Agora todos os jornais trazem desgraças e foram fazer companhia ao Correio da Manhã. Melhor dizendo: concorrência. É inevitável. Têm que sobreviver. O povo gosta dessas coisas. Crimes. Casos de violência doméstica. Corruptos que escapam da lei no intervalo dos pingos da chuva porque a lei o permite. E para culminar, agora temos o maldito do Covid - 19. Este número refere-se ao ano em que o vírus apareceu, praticamente vindo do nada. Pois, do nada. Prefiro admitir a existência desse nada em vez de culpar os morcegos, os animais exóticos e os chineses que se banqueteiam com os ditos cujos. Por enquanto só esses chineses. Porque certamente há outros suspeitos que estão ocultos, por exemplo, por um nevoeiro especial que talvez nunca venha a dissipar-se. Estes não os esqueço. Entretanto tenho que denunciar as condições precárias de higiene que existem nos mercados chineses. Isto é tapar o sol com a peneira.
Entrei no café do costume, ao Saldanha. Estou a tomar o pequeno almoço ao mesmo tempo que escrevo num caderno A5, de espiral. Meia de leite e um pão com manteiga, quiçá sucedâneo de manteiga. No fundo, um pequeno almoço de remediado. Remediado. Referi esta palavra com um certo ar de displicência. Claro que ainda pertenço à classe média alta, mas esta está a ser muito maltratada. Daí ter feito futurologia ao referir "pequeno almoço remediado". Ou atingi já esse patamar?
Não vou referir a inspiração ou falta da mesma no que diz respeito ao texto que estou a escrever. Pouso a esferográfica na mesa e dou uma dentada no pão. A seguir mastigo o pão até que se transforma em bolo alimentar e só depois pego no copo e dou um gole prolongado. O leite sabe-me a água, mas o pão equilibra o sabor. Desisti da meia de leite e do resto, incluindo a esferográfica, e concentrei-me no jornal.
O que leio, perturba-me. É dado como certo que o novo coronavírus já infetou 77 países e morreram 3199 pessoas. A China tem a maior parcela: 2984. Seguem-se a Itália e o Irão. Em Portugal estão confirmados seis casos de infeção e felizmente ainda não há mortes até ao momento. Mas é inevitável. Agora que chegou o vírus, nada nem ninguém o vai fazer parar no seu objetivo natural de multiplicar-se sempre que é recebido por um hospedeiro. Parvoíce a minha quando imagino que o vírus tem objetivos. É apenas um intruso oportunista, "apátrida", fora dos reinos da Natureza. Uma coisa que só é visível ao microscópio eletrónico e que não sobrevive se não se introduzir num hospedeiro no espaço talvez de uma meia dúzia de horas, ou pouco mais. Apresenta um genoma constituído de uma ou várias moléculas de ácido nucleico. Fora do ambiente intracelular é inerte. Contudo, dentro do hospedeiro é capaz de multiplicar em poucas horas milhares de novos vírus. É o que está a acontecer de uma forma assustadora. Não quero acreditar que seja verdade.
Olho em volta e reparo que o café está bem composto. Como é habitual, aliás. Imagino que a partir de um dia não muito distante as pessoas vão refugiar-se em casa com medo do contágio. Ainda é cedo para entrarem em pânico. E há a possibilidade do monstro oportunista perder virulência por um motivo qualquer. Quanto a falar de vacinas ainda é cedo. Muito cedo. Talvez seja experimentado um medicamento ou um conjunto de medicamentos que tiveram algum êxito nas últimas pandemias. Sim, porque isto é já uma pandemia. Ou vai ser.
E as pessoas que estão no café, quantas são as que pensam que estamos à beira de uma tragédia? Louco. Eu é que estou errado porque não consigo evitar o ataque de pensamentos circulares. Mas descansem que não vou deitar-me do quarto andar do meu apartamento para o passeio. O impacto é violento e fico todo amassado. Nem quero pensar nisso, embora já tivesse pensado há uns segundos. Prefiro acreditar que isto vai passar. Afinal só há seis casos de infeção. Entretanto a esferográfica continua sobre a mesa mas parece desafiar-me. Quer que escreva mais. Talvez que a culpa seja daquele indivíduo de nariz afilado que não para de mirar-me. Não, não sou homossexual, cretino. Respeito os homossexuais e as lésbicas. Não são aberrações, mas quero afastamento.
Como foi que aconteceu na Itália?
Julgo que há uma conspiração no ar. Este "julgo" é uma dúvida. Já faz parte de uma teoria da conspiração dentro da conspiração que parece estar no ar. Por enquanto deixemos tudo como está.
Estou na rua. Não me fiz velho no café porque não gostei do ambiente. Principalmente senti-me incomodado pelo fulano do nariz afilado e pelos seus olhos de peixe. Não sei nem quero saber aonde vou. Simplesmente vou por aí. Sem destino.
Neste momento estou a descer a avenida da Liberdade. Há muita gente a descer a avenida. Há muita gente nas ruas de Lisboa. Sem sinais de preocupação no rosto.
Será que só eu estou preocupado e que sinto o peso do cinzento cá dentro?
Mais duas centenas de passos e vou chegar aos Restauradores. Se os Restauradores são uma finalidade.
Afinal já sei aonde vou. A um alfarrabista da Calçada do Combro. Ainda é longe. Preciso de fazer exercício e de ser controlado pelo contador de passos. O motivo para encontrar um livro da Argonauta, que há muito procuro, não passa de justificação ilusória. O nome do livro é "A Guerra das Salamandras", um clássico de um autor checo, se não estou enganado. Já o li em tempos e gostei muito. Não sei o que fiz ao livro. Gostava de o ler de novo. Se o tiver comigo fico a saber se fui eu que mudei ou ele, livro. Claro que fui eu. Não estou preparado para esta coisa ruim do covid. Pressinto que muitas águas vão correr, bem como acontecerão os altos e baixos da mente. E se não fosse esta nova situação era outra coisa, porra.
«Vamos em frente, João, estica-me essas pernas!»
Já cheguei a casa. Foi apenas uma ilusão que transmiti. Enganei os leitores e enganei-me a mim mesmo. Afinal segui diretamente do café para casa.
O ócio vai acabar comigo. O ócio vai ser o meu carrasco. Mas até que aconteça vou dar luta. Prometo. A quem? A mim, claro. Gostava de travar uma luta diferente. Se um dia voltar a encontrar a Susana vou lutar por nós. Cretinice. Ela foi bem explícita. Se quisesse aproximação tinha-me dado o contacto. Portanto, esquece, João. Esquece de vez.
ORIGENS...?
9 de março, segunda-feira
Como acontece normalmente, acordei cedo. Ainda não comecei a mudar alguns dos meus hábitos. É cedo. Mas o inevitável vem aí.
Tive um dos meus sonhos frequentes. No sonho mudei de casa. Vi, algo contrariado, que os antigos ocupantes tinham deixado quase todo o recheio. Havia muitos móveis dispersos. Livros e discos de vinil estavam arrumados numa estante que ocupava toda a parede da sala de entrada. A minha atenção concentrou-se num móvel sem alçado que estava no meio da sala. O mais certo era ter sido deslocado para ali, pois a disposição do dito contrastava com a estética da sala.
«Achas natural?» perguntei à minha companheira.
Limitou-se a sorrir. Nos meus sonhos os mortos não falavam. Talvez ela estivesse morta.
Abri ao acaso uma porta do móvel e chamou-me logo a atenção um pequeno cofre que nem fechadura tinha. Levantei a tampa e espreitei. No seu interior estava um maço de notas dobradas de cinquenta euros. Pelo volume deviam ser à volta de cem.
«Cinco mil euros!»
A minha companheira continuou silenciosa.
«É muito dinheiro. Esperamos que eles venham buscar as notas?»
Provavelmente não voltavam.
Passam alguns minutos das onze. Não consigo entender o sentido deste sonho. Aqueles cinco mil euros não eram meus e, embora desconhecesse a proveniência dos mesmos, não hesitei em apropriar-me deles. Felizmente, dinheiro não me falta. Se o sonho faz algum sentido talvez descubra mais tarde.
Já comprei o jornal no quiosque. E agora? Sinto-me sem ideias, mas tenho uma certeza. Não vou ao café do costume. As pessoas têm olhado para mim como se fosse uma ave rara. Ou então é impressão minha. Depois, o homem do nariz afilado mete-me nojo. Tenho-me olhado ao espelho e parece que estou normal. Não consigo meter-me na pele dos curiosos. Quase admito que tenham razão. Devo ter um rosto alucinado, ou isso. Ou é tudo impressão minha. Que veem em mim? Falo alto quando leio o jornal ou escrevo no caderno? Sinto-me muito incomodado e, antes que cometa um disparate como dar um sopapo no homem do nariz afilado, ou mandar um desses curiosos à outra banda do Tejo ou ainda isso, acho por bem ir hoje para os lados do Saldanha. É saudável dar mais uns passos que o habitual. Têm sido muitas horas a curtir o tédio no teto do quarto. Claro que não há para ver, a não ser que a imaginação trabalhe à margem do consciente.
Decidi que desta vez vou mesmo andar.
Estou hesitante entre o Atrium e o Monumental. Preciso de luz. Espírito muito iluminado e não só. Estas teias de aranha que me incomodam têm de ser arejadas. Abaixo o ócio! Preciso de afastar-me o mais possível do autor de "O menino de sua mãe" e também deixar ao largo o desejo irresistível de "beber porque não tenho sede". Mas, na verdade, bem preciso de apanhar uma piela daquelas memoráveis. Vou pensar nisso.
Já decidi. Atrium Saldanha. Era um dos meus locais de preferência antes disto acontecer. Vamos a ver como reajo.
Dou de caras com o piano a executar automaticamente uma melodia conhecida e não evito um sorriso meio irónico, meio amargo. Prevalece o último. Afinal não cheguei a conhecer a verdadeira Susana. Aquelas suas últimas palavras, antes de cada um partir para o seu destino, deixaram-me na dúvida. A mulher que vestia de vermelho e conheci no piano-bar de Albufeira e que me ofereceu sem limites, horas mais tarde, a cama e o erotismo de toda uma languidez que mostrou naquela noite que não esqueci, era mesmo a verdadeira?
Fiquei estático por minutos talvez a tentar descobrir o nome da melodia, talvez a admitir que as relações breves e intensas são as que ficam mais marcantes ao longo dos anos que as engrenagens impiedosas do tempo sucessivamente trazem.
«Onde moras, Susana?»
Resolvi subir as escadas rolantes e encaminhei-me para a Almedina. Um amigo tinha-me falado de um livro de Neil de Grasse Tyson e de Goldsmith de nome "Origens", provavelmente relacionado com a série televisiva do mesmo nome que, em tempos, segui com inusitado entusiasmo. A magia do audiovisual estava a ultrapassar a escrita em papel, mas eu ainda ia resistindo aos ventos do progresso. Um bom livro permitia que se soltasse a imaginação, pois dava-lhe todo o tempo do mundo para desbravar novos horizontes. Ninguém consegue travar a imaginação, disse alguém. E, se não disse, digo eu agora. Também sou alguém.
Não pedi qualquer informação à entrada. Sabia muito bem onde podia encontrar o livro. E não me enganei. Fui lá direito que nem um fuso. Não tardou que estivesse a ocupar uma mesa encostada à parede e com vista para a Fontes Pereira de Melo. Por companhia, tinha o inevitável jornal e agora mais o livro de Tyson. Este último ficaria para ler em casa e fazer alguns resumos que talvez nunca chegasse a ler. Um hábito que vinha de longe. Não era com os meus quase quarenta e oito anos de vida e o pesadelo do vírus oportunista que ia perder o hábito que vinha dos tempos dos últimos anos de liceu e depois do ISCAL.
A primeira notícia que li foi um prenúncio de mau agoiro. Um indicativo muito negativo relacionou-se com a subida acentuada do valor do ouro, a rodar os mil e setecentos dólares por onça. Nada trazia de bom para o futuro próximo. As causas. Corrigindo, a causa. O tal intruso que ameaça modificar as nossas vidas. O covid - 19. E aqui dou razão ao controverso e quase ignorante presidente Trump que desvaloriza a epidemia que denominou por "vírus da China". Acho que desta vez acertou em cheio. Quanto muito na origem. Quanto às causas, ainda é cedo para consolidar ideias. Apenas admitir desconfianças. A fase do "cheira-me a esturro".
«Não é oportuno.» Terá dito alguém, com prudência.
«Não veio da China?» respondeu, de cabeça erguida, feito galo.
E era verdade. Embora o objetivo do presidente do gigante adormecido, (erro crasso dar tempo ao vírus de se disseminar!) fosse de outro cariz, tentando "marcar" o seu inimigo político, agora não só na corrida ao armamento e à corrida ao espaço, como na encarniçada batalha económica. Mas criar complexos de culpa num país comunista, como é a China, com ditadores que optaram por um capitalismo selvagem de sucesso que lhes ofereceu outro tipo de poder de futuro imprevisível, era talvez o mesmo que malhar em ferro frio. Se estão a meio de um jogo perigoso, pergunto: aonde querem chegar e como vão agir depois de chegarem?
Talvez que os ideólogos chineses não estejam o ter o êxito tão depressa como desejavam. A guerrilha das taxas está a ser um travão forte.
Então como cortar o cabo desse travão?
E assim está a entrar em cena mais uma teoria da conspiração, parecendo que esta faz algum sentido. Mas ainda não vou por esses caminhos, porque nesta altura do campeonato os chineses são as vítimas da tragédia provocada pelos morcegos e animais exóticos que os glutões não dispensam. Quando vierem outros tempos, logo se vê. Por agora fico desconfiado. Estamos numa fase que aconselha prudência.
Quanto aos números, a China tem neste momento 80904 casos de infeção e mais de 3000 mortos. Segue-se a Itália que tem de quarentena um quarto da população. Os casos são mais de 7300 e à volta de 350 mortos; e a situação na Lombardia está muito complicada. Quanto à Coreia do Sul parece estar agora a controlar a epidemia. Conta mais de 7400 casos e 51 mortos. O Irão, tem já 237 mortos. Entretanto em Espanha, com quase mil casos de infeção, Madrid decretou o fecho das escolas e universidades por quinze dias. E nós por cá estamos ainda num começo incipiente. Acredito que é só uma questão de dar tempo ao tempo para o oportunista covid - 19 proliferar no seu caminho devastador. Se ele fosse humano, acrescentaria: sem dó nem piedade.
Lá li tudo o que tinha a ler e fiquei mais mal disposto do que nunca. Tenho saudades da emoção dos jogos de futebol. Das vitórias e das derrotas do meu clube. Das segundas-feiras de tristeza, mas sabendo que a vida continuava. Dos almoços com os poucos amigos que tenho e do jogo das moedas para ver quem pagava os cafés e os digestivos. De rir com as anedotas estúpidas do Adolfo.
A propósito, o Adolfo e o Zeca não atendem o telemóvel ou então sou seu que tenho o meu desligado. Não sei bem. Estou pior do que pensava.
Voltei a passar pelo piano de música automática e a lembrar-me da Susana talvez por causa do piano. Não consigo esquecer-me daquela noite.
Agora vou almoçar. Já escolhi. Feijoada de chocos. Espero que o prato esteja ao meu gosto. É tudo por agora. Não há mais nada para dizer e não quero repetir-me.
Os chocos estavam tenros, mas o desgraçado do cozinheiro salgou a feijoada. De qualquer forma, ainda bem. É sinal que não fui infetado pelo novo coronavírus, pois um dos sintomas, segundo dizem, é uma pessoa perder o paladar. O pior é que bebi mais dois copos de vinho tinto do que o costume e as consequências estão talvez a caminho. Paciência. E se acontecer, não tenho ninguém para controlar-me. Vou para casa ver televisão com o único intuito de adormecer no sofá.
«Posso sentar-me ao seu lado?»
Não demoro a responder.
«Claro. Os lugares são públicos.» Respondo, ainda absorto nos meus pensamentos.
É a voz de uma mulher. Olho de relance. Traz um tabuleiro com uma tijela de sopa, um prato com dois rissóis e salada de alface. Não tenho vontade de falar com estranhas. Ainda bem que ela procurou um lugar só para almoçar. Pelo menos é o que penso. Mas desconfio que há mais. Veremos.
«Gostou da feijoada?»
Oportunidade de ouro para ela meter conversa.
«Nem por isso. Puseram sal a mais.»
«Ah!, ainda bem que não escolhi esse prato.»
«Teve sorte.»
«Pois tive. Que me diz do vírus?»
Passou rapidamente da sorte para o azar.
«Mata. Desculpe, vou beber café. Pode ficar com o jornal.»
«Obrigada. Chamo-me Mafalda...»
Já levo o tabuleiro numa mão e o livro na outra. Procuro o local para arrumar o tabuleiro. É boa norma. Quanto ao contacto com a dita Mafalda, nem sequer me apresentei. Fugi a sete pés. Estou a tornar-me um bicho do mato. Não me reconheço.
A Mafalda ficou a comer a sua sopa e o resto. Noutros tempos talvez tivesse regressado à mesa com dois cafés e ficado a conversar com ela.
«E eu sou o João. Costuma vir aqui muitas vezes?»
«Quase todos os dias.»
Vi-a de relance mas o suficiente para afirmar que não é mulher que se deite fora. Mas a vida é assim. Pelo menos, hoje e talvez nos próximos dias. Para mim. Infelizmente para mim.
Já estou na rua. Tenho que ter cuidado com as pessoas que tossem para cima de cada um. Anda para aí muita gente doida à solta.
Julgo que estou com febre. Quando chegar a casa vou tirar as dúvidas de vez. Talvez seja dos dois copos de tinto que bebi a mais. Bendito vinho que me tirou a sede causada pelo sal a mais que o cozinheiro ou chef pôs no guisado.
Que vou fazer para casa tão cedo?
Ah, já disse. Ver televisão no sofá e adormecer. Ainda agora começaram as pequenas mudanças de hábitos e a procissão está no adro da igreja. Se ao mesmo este covid-19 fosse visível já alguém o tinha morto com um balázio. Isto se tivesse pistola.
Afinal mudei de ideia quando cheguei a casa, A caminhada fez-me bem. Dissiparam-se os valores etílicos. Assim, comecei a ler o livro. A astronomia é uma paixão recente. Os cientistas calcularam que o universo teve origem, há quase catorze mil milhões de anos, de uma grande explosão vinda do nada e expandiu-se e continua a expandir-se porque a energia escura está a vencer a batalha contra a matéria escura e será inevitável o fim do universo daqui a uns tantos milhares de milhões de anos. Faz-me rir esta previsão dos cientistas. É infalível porque ninguém estará cá para testemunhar. Quanto ao covid-19, uma coisa só visível ao microscópio eletrónico, não pode continuar a multiplicar-se, a expandir-se sob pena de provocar uma terrível mortandade no homem. Mas antes de ser encontrada a vacina, só um milagre pode travar a continuação de tanta morte!
O furacão está cada vez mais próximo e ainda não consigo imaginar que força traz consigo e que consequências vai deixar para trás depois de passar por nós. A China parece recuperar. A tragédia está agora em Itália, principalmente na Lombardia. As notícias não são nada animadoras. Oxalá os iluminados estejam enganados nas previsões monstruosas que revelaram. Talvez seja só para conter o otimismo natural do povo italiano. Isto é já pandemia e a OMS anda a assobiar para o lado. Porquê? Não sei. Perguntem aos adeptos da teoria da conspiração.
É estranho o que está a acontecer nas ruas de Lisboa. Nunca vi um sábado assim, com tão pouca gente a circular nestas ruas amaldiçoadas pelo deus menor.
Mas porque estou a dizer blasfémias? Não tenho a mínima razão para estar zangado com Deus. Ou tenho? Mais uma vez não impede que tragédias como esta venham à ribalta. Esta merda do vírus está imparável e estamos aleatoriamente à sua mercê. Que Deus é este?
Os cientistas levaram o homem à lua e agora sonham com Marte. Provaram a existência dos buracos negros e idealizam viagens impossíveis com astronautas e naves esparguetizadas ao serem atraídas por buracos negros para o outro lado de universo. As novas tecnologias estão num patamar nunca imaginado, mas nem tanto ao mar nem tanto à terra. A medicina opera milagres, mas está longe de encontrar a cura do cancro e outras espécies de cancros, por exemplo os monstros que agora devoram dentro dos pulmões de vítimas inocentes.
Será que esses homens prodigiosos passaram para lá da dead line e Deus quer mostrar que está muito acima das suas ambições insaciáveis?
Fala-se à boca cheia que o presidente Marcelo vai decretar o estado de emergência, mas a visão desta Lisboa que tanto amo mudou muito nestes últimos dias como se as pessoas estivessem já a antecipar-se ao inevitável. É talvez o resultado de tanto lhes martelarem aos ouvidos frases como "se tem amor à sua vida e à dos outros, fique em casa", "mantenha uma distância segura em relação às pessoas na proximidade", lave e desinfete as mãos", "não tussa ou espirre para cima dos outros; quando tossir ou espirrar leve a boca ao braço ou o braço à boca, ou as duas coisas (digo eu)", "não cuspa para o chão (os cuspidores já o deviam ter feito há muito tempo, também digo eu)". Entretanto desvalorizam o uso das máscaras porque estas faltam no mercado. Para isto só há duas palavras. Mentira e cinismo.
Estou a mostrar uma faceta que desconhecia. Desde quando sou hipocondríaco? Lógico. Desde que tive conhecimento da existência do monstro. Se não estou a entrar em pânico, sinto que o limiar está cada vez mais próximo. Preciso de resistir. Vou resistir. Vou continuar a existir. Tenho que repetir estas ideias para ganhar força. Este monstro não vai tirar-me o sono, muito menos destruir-me. Juro que não me vou abaixo. Estou a dobrar-me como um caniço que não quebra. Só isso. E vou tentar aguardar com serenidade pelos maus dias que se aproximam. Sim, porque penso que ainda agora começou este pesadelo.
Mas como reagirei se me obrigarem a ficar em casa, pois sou um espírito de contradição?
Amo a vida. Logo se vê. Não vale a pena andar com o carro à frente dos bois.
Deixei de ir ao café que frequentava habitualmente de manhã. Agora estarei todos os dias no Atrium a partir das dez da manhã. Algures no primeiro piso, ocupo uma mesa perto do piano das melodias automáticas. Leio o jornal, escrevo no caderno, leio alguns parágrafos do livro "Origens". E sempre que oiço as melodias do piano, lembro-me da mulher que conheci em Albufeira. Esta fixação é irracional. Não pode estar a acontecer. Uma passagem breve na minha vida que deixou marcas. A probabilidade de nos encontrarmos de novo é muito baixa, rente aos 0%. Quanto à ninfomaníaca que se chama Judite, lembro-me dela pelos piores motivos. Passou como uma nuvem qualquer passa. Ainda bem que não voltou a contactar comigo depois do quase grito do Ipiranga quando, naquela noite, fugi para uma ligação de menos de vinte e quatro horas. Antes que fosse descartado, descartei-a. Abaixo aquela mulher que gostava de ser "amazona", embora me desse um prazer do caraças! Não sei como a nossa relação durou pouco mais de seis meses. Dela só recordo o sufoco dos seus desejos obsessivos pelo sexo e também da apetência exagerada pelo álcool. Gosto de sexo, mas assim com tantos "requintes de malvadez", nem pensar. Não consigo entender como me deixei envolver nas malhas daquela paixão doentia. Talvez tivesse sido a novidade dos primeiros dias. Depois foi o arrastamento de uma situação sem possibilidade de estabilizar. A saturação. Minha e provavelmente da Judite. E antes que o atrito pegasse fogo, felizmente que entrei naquela noite no piano-bar. Mas saí de uma situação para entrar noutra que afinal era um beco sem saída. De qualquer forma, adeus, Judite. Assunto arrumado. Não vou pensar mais neste erro que ambos cometemos, admitindo que o seu objetivo não era obscuro. Contudo, foi bom em certos momentos.
A esferográfica teima em "pedir" para continuar a sua missão rotineira. Então...? De momento não tenho mais nada para acrescentar. Mas ela teima. E eu fico a pensar. Só se escrever "palavras a esmo". E é o que está a acontecer. Ainda não tinha dado por isso. Desculpa-me, José Duro se vou falar de ti. Prometo ser breve. Longe de mim ver-te dar voltas ao caixão já apodrecido e aglutinado pela matéria orgânica. Se a alma existe, fica sereno porque nada vou dizer da tua obra, obra de um incoerente, segundo um verso teu. Não vais ofender-te porque, desde que ouvi falar de ti e li mais que uma vez o "Fel", nunca deixei de admirar-te e lamento que a morte te levasse tão cedo por causa daquela maldita tuberculose que hoje teria cura. Lembro-me de ti muitas vezes e agora mais do que nunca. Estou indefeso, poeta que conviveste com a morte mesmo antes de morreres. O mesmo está a acontecer comigo. A morte anda por aí e mata a direito, ao mesmo tempo que prepara com "inteligência" futuros candidatos que aquela besta covid - 19 infetou e continua a infetar com uma força crescente, escolhendo, com cobardia os mais fracos que, certamente, já não conseguem enfrentá-la. Não estou nessa fila de espera. Mas nunca se sabe. Tenho que resguardar-me dos soldados maléficos da pandemia antes que me apanhem desprevenido. Não sei que defesas tenho. Se muitas, se poucas. Só sei que, de momento, estou bem e sou um lutador que não segue o exemplo do "poeta das caveiras" que antes de morrer já estava morto. Por mais que me lembre do espetro da morte quero vê-la bem longe. Alguma vez há de chegar o meu dia, é certo. Não é hoje nem será amanhã. Mas prudência e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
Já lá vai o tempo da mocidade em que imaginava que abraçava a eternidade ou que ela me abraçava. Em qualquer dos casos, saía sempre vitorioso e sem uma beliscadura das refregas que travava com uns tais moinhos de ventos, monstros horríveis parecidos com os que Dom Quixote, bravo cavaleiro, aniquilava ante o testemunho atónito do fiel Sancho Pança, montado numa mula, ou isso, que nem coices dava ante o perigo iminente.
À medida que o fio do tempo se foi estendendo e trouxe revelações concretas que me chocaram e despertaram outro tipo de processamento na mente, acreditei que a realidade era outra. Então comecei a dar mais atenção aos casos dos familiares mais velhos que se afastaram da vida e também aos jovens que adoeceram e não recuperavam. Se eles morreram que ficava cá a fazer? Era diferente? Adeus, eternidade. Passa bem que eu por cá fico na fila de espera. Eternos são os heróis da banda desenhada que atravessaram gerações sem serem beliscados.
Mandei para longe essa tal utopia que é a eternidade. Embora seja adepto da teoria da continuação da vida para além da morte, da existência dos mundos paralelos onde infinitas cópias de mim podem estar a viver outros destinos, pelo sim pelo não, é melhor dar muita atenção às matreirices deste covid - 19, oriundo da China, que parece estar a multiplicar-se de uma forma escondida. A esse propósito e para complicar mais a situação, admito a existência dos contaminados assintomáticos que representam um forte perigo de consequências imprevisíveis e para as quais nenhum país está preparado para enfrentar. Pelo menos, por enquanto. Ou a China está? Esqueçam. Escapou-me. Não disse nada. Por enquanto é melhor estar calado.
Ninguém sabe quantas pessoas um assintomático pode infetar. É lógico porque não traz nenhum sinal na testa.
É urgente encontrar um meio de travar a pandemia antes que a tragédia atinja a humanidade. Entretanto, os dias passam no seu ritmo habitual. As notícias são cada vez menos animadoras. E não param de chegar. Tanto elas como os dias. Nada os trava. É mesmo assim. O tempo avança. Nunca recua. Pouco há a fazer. Mas dentro do pouco, é proibido enterrar a cabeça na areia. Perante este cenário, devo descer inevitavelmente à realidade nua e crua da minha pequenez neste universo que me acolhe e não protege de qualquer eventualidade aleatória. Reforçando, pergunto se ainda sou mais fraco que um grão de areia que resultou da erosão de uma rocha, qualquer que ela seja, mais resistente ou menos ao desgaste provocado pelos elementos da Natureza; pergunto também se vale a pena alargar o meu horizonte, pois não posso passar para além dele. Enfim, há tantas coisas que estão para fazer e podem ficar para trás no momento fatal em que podemos estar no sítio errado e à hora errada.
A vida é cruel. O vírus é "inteligente". Pode encontrar-me, um dia, no sítio errado. Num dos muitos dias que vão continuar a passar neste nevoeiro de incertezas. O vírus...
«Bom dia.»
Ainda bem que ouvi uma voz. Estava à volta com este dilema terrível e de certeza não ia sair dele tão depressa.
Levanto os olhos do caderno e dou com ela. Está junto à mesa e nada a vai impedir de sentar-se na minha frente. No outro dia ficou na mesa ao lado e eu levantei-me quase de imediato com o tabuleiro e o resto. Fui mal educado. Mas ela estava a merecer ou foi o que pensei.
Largo a esferográfica Parker e tento fazer o melhor dos sorrisos.
Vá lá, João!, não custa nada.
Não. Não estou intrigado. Nem penso que há algum mistério para desvendar. É tudo muito linear. Ela engraçou comigo e está tudo dito.
«Sim, sou seu. Almocei ao seu lado há dias.»
«Bem sei. Mas há uma coisa...»
«Sim?»
Consultei o relógio. Passam poucos minutos das onze.
«Veio mais cedo.»
«Cheguei a esta hora porque é sábado e não trabalho ao sábado. Posso sentar-me na sua mesa?»
Nem eu trabalho todas as manhãs. Mais uma das minhas rotinas, pois gosto de trabalhar à tarde e pela noite fora, quando não há um filme bom para ver na televisão. Isto vai continuar a acontecer até que o nosso presidente promulgue o decreto que me parece inevitável promulgar.
«Claro que sim.» Admiti o inevitável.
«E o senhor também não trabalha aos sábados?»
Curiosidade natural.
«O senhor foi dar uma volta. Agora só cá está o João. Trabalho por minha conta, se quer saber.»
«Muito bem, João, não me intrometo. Penso que já lhe disse que me chamava Mafalda.»
«Afirmativo.»
Já se tinha apresentado quando me levantei mal humorado naquele dia, com o tabuleiro numa mão e o restante na outra mão. Aquela mulher violara a minha privacidade e considerara imperdoável semelhante atitude. Hoje a minha opinião tinha mudado. Vá lá entender as pessoas. Vá lá entender-me.
«Interrompi o seu trabalho. Estava a escrever» disse, olhando para o caderno. «É escritor?»
«Longe de tal. Apenas tomava de momento umas notas. E a Mafalda, que bons ventos a trazem a estas paragens?»
«Fugi às notícias da televisão e vim espairecer um pouco. Talvez encontrasse alguém conhecido com quem pudesse conversar. E então vi o João. Ainda bem.»
Pois, o João mal humorado daquele dia talvez não fosse boa companhia. Mas o João de hoje mostrava outra abertura. Também precisava de espairecer. Coisas da vida. Esclarecendo melhor, coincidências. Ia a admitir coisas do diabo, mas recuei. Talvez que Satã tivesse mais que uma faceta.
«Ainda bem que veio, Mafalda. Mas só aceito a sua presença se falarmos de tudo menos do vírus. Está combinado?»
«Não quero eu outra coisa. De tantas notícias que oiço, agora só tenho tosse ou sinto que me falta o ar.»
«Fuma?»
«Infelizmente.»
«Corre um risco grande se for infetada. Pode ser que este susto que apanhou a faça desistir de fumar.»
«Deus o oiça.»
«É crente?»
«Sou.»
«E onde está Deus?»
«Em todo o lado, creio. Mas falemos de outras coisas. Qual é o seu hobby, João?»
«Conviver com mulheres bonitas.» Pensei.
«De momento, nenhum. Esta coisa do maldito vírus deu-me volta ao miolo. Mas não falemos dele. Quem falar, é multado. Combinado?»
«Sim.»
Olhou para o livro que tinha sobre a mesa.
«Não acredito. Parece-me um homem forte de espírito. Astronomia. Acertei?»
«O livro veio passear. Só consegui ler dois ou três parágrafos.»
«E se fôssemos também passear?»
«Até onde, Mafalda?»
«Vamos por aí...»
«Então, vamos.»
«Que acha dos assintomáticos?»
«São a arma mais oportunista e mortífera deste vírus. Mas não combinámos ignorar o tema da pandemia?»
«Estou multada.»











